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«É o sonhar que também me leva ao concreto». João Ribeiro aip

Está em sala o filme «Um Filme em Forma de Assim», o mais recente trabalho de João Botelho e mais uma faz parelha com o nosso membro João Ribeiro aip. Baseado na obra «Uma Coisa em Forma de Assim» de Alexandre O’Neill. Trocamos uma conversa rápida com o João que aqui transcrevemos com as fotografias que nos mandou à posteriori. Começamos por lhe perguntar:


AIP - Nunca seria óbvio nem fácil adaptar os textos de Alexandre O'Neill ao cinema. Houve alguma debate entre ti e o João para abordar visualmente este filme? Houve outras sugestões que depois desistiram?


JOÃO RIBEIRO - Para mim este filme tem dois fatores que gostaria de vos falar, no sentido em que são fundadores da estrutura do filme. Um, é sem dúvida a questão do texto…para mim é nele onde reside o grande trabalho, se quiserem até de montagem deste filme. Tudo o que se diz em diálogos, monólogos, quando aparece um ator a relatar algo como se de uma voz off se tratasse (com ator e ação em campo, veja-se plano restaurante verde),


ou o que é cantado, é na realidade uma montagem de inúmeros textos do Alexandre O’Neill. Aquilo que nos parece fluído, é-o dentro dos planos e só aí… essa matéria e a forma que a ouvimos (e vemos) só tem lugar dentro dos planos. Penso que serão cerca de 17, 20 fontes distintas, que o João Botelho e a Maria Antónia Oliveira recorreram para escrever o guiāo. O outro fator, é para mim sem dúvida o trabalho de maquinaria efetuado pelo Manuel Ramos. A forma como ele levou o texto e a câmara é igualmente uma forma de escrita. Os movimentos têm pontos finais, vírgulas, reticências, parágrafos, ..(e até alguns erros ortográficos, pois zonas do chão, desníveis, etc não foram nivelados ou tratados como pedimos, daí ás vezes o estremecer brusco da câmara). Filmar, para mim desde o tempo que fazia muitos (ou só)

documentários sempre foi escutar primeiro, e a forma como o som sempre me faz ver, como a palavra muitas vezes pode mandar na imagem, nem que seja obrigando-a a ser um contra campo do que escutamos. Neste filme a escrita do texto e a escrita da câmara tornam-se cúmplices de uma forma perfeita, porque ao contrário do que referi anteriormente, a palavra (leia-se SOM), não é um contra campo da imagem (leia-se o que se VÊ). Neste filme a escrita que se ouve também se vê, tornando-se quando a mim um “filme em direto”, devido aos planos sequência e à experiência do tempo. Os planos são um corpo só que não se desmembra. Cada plano deste filme é um corpo só, que fala e se desloca ao mesmo tempo. Concluindo: texto e movimento são os protagonistas deste filme, depois vem o resto….o texto é incorporado pelo corpo dos atores, da mesma forma que movimentos são incorporados, pela luz. Estas duas ideias são fundadoras deste projeto e já me chegaram assim. Como eu e o João nos conhecemos e trabalhamos há muitos anos, ele partilha sempre os projetos antes de o serem … ou seja a ideia e a forma de a fazer, muitas vezes falamos antes da escrita dele. Aqui também aconteceu o mesmo e a prova é que o guião contém desde o início a estrutura do que se tornou o filme: entre o texto e os planos sequência.


E outra coisa fundamental que é a filmagem em estúdio (armazém, pois os decores não cabiam em nenhum estúdio), que existe desde sempre, porque este filme só se poderia fazer assim, e não devido à pandemia como veio referido em alguns artigos. O meu trabalho com o João na pré-produção foi o desenho dos planos sequência. Durante a execução da ideia do estúdio eu estava a fazer uma longa no Iraque (e Curdistão), quando cheguei, o nosso trabalho foi desenhar os planos num espaço já criado. Obviamente na altura de executar os planos na rodagem, estas nossas ideias seriam confrontadas com questões de vária ordem e aí o Manel Ramos também passou a criar os movimentos ou parte deles, dando soluções para dificuldades ou ideias novas muito melhores que as minhas e do João, até porque trabalhar no espaço, o confronto com ele é sempre um momento de reescrita para todos.


Não tivemos propriamente ideias que depois não deu para fazer por este ou aquele motivo. Quando já existe experiência, tu já crias com a noção das condicionantes que tens. Sinceramente não me lembro de nada que pensássemos e não acontecesse. Não estou a dizer isto, afirmando que não se deve sonhar com planos, luz, movimentos na pré-produção… eu sonho muito, projeto muito, desenho muito, mas é o sonhar que também me leva ao concreto. Num filme tão conceptual como este tudo se torna mais fácil , porque estás tabelado à ideia fundadora do projeto. Ele já nasceu Assim e assim será.



Esquemas de luz e movimentos de câmara desenhados em pré-produção

AIP - A fotografia deste filme não vem em sequência do vosso anterior filme? «O Ano da Morte de Ricardo Reis» mas desta vez a cores?


JOÃO RIBEIRO - Há várias “mais valias” por se trabalhar com o João. Por um lado a sua experiência, os seus filmes, ele próprio…depois vem o facto de ele saber de tudo: da luz, da maquinaria, do som, etc etc. Todas estas qualidades quanto a mim, só potenciam o trabalho de quem colabora com ele.

Tenho uma espécie de pacto pessoal comigo próprio, que lhe levo para os filmes. Não é repetir, mas sim inovar,

experimentar, fazer diferente daquilo que fizemos a última vez. Isso agrada muito ao João,… para mim isso é fundamental porque me faz evoluir, faz-me aprender, faz-me encarar cada filme como um mundo próprio e único, que só a ele pertence. Esta criação obviamente que tem de ser pensada dentro do estilo dele. Tento fazê-lo igualmente com todos os realizadores que trabalho, quando a artificialidade é convocada, ou quando o realismo é mais convocado.

A primeira coisa que ele me disse foi, “vamos fazer um filme pop”, como vínhamos de uma solenidade muito própria do preto e branco, aqui a cor tornar-se-ia o novo desafio. A cor… para mim o mais misterioso e

difícil de se lidar no nosso trabalho de diretores de fotografia. Já li varias teorias da cor e é-me muito difícil concluir, ter certezas (sei que nunca as há, mas aqui sinto-o muito mais), e principalmente não cair numa espécie facilidade que tanto se vê hoje em dia, através do uso que se faz dela. Queria fazer um filme a cores e também um filme colorido. Para mim um filme que exemplifica o que digo poderá ser o “Deserto Vermelho”, mas também pode ser o “Feiticeiro de Oz” , mas lá

está este para mim será mais colorido do que a cores. Ambicionei cruzar esses dois estilos.

Há musicais fantásticos, há os filmes do David Lean, Douglas Sirk, directores de fotografia como o Russell Metty, ou o Jack Cardiff, há muitas coisas em Technicolor… Mas como sempre faço, fui recolhendo e reunindo elementos visuais que me guiassem na proposta de cor que fiz ao João. Para ele o restaurante sempre foi verde, mas depois havia de articular com todo o resto.


Salvo raras exceções neste filme, as caras são sempre neutras, “brancas” e não da cor do ambiente onde estão. Se há planos sequência, a cor teria de ter uma progressão, uma lógica de poder iluminar uma cara branca, ao lado de uma cara iluminada por vermelho, que joga com o vermelho de um vestido…a coisa foi evoluindo neste modo. Aqui o exemplo das imagens de referência e alguns stills ilustram melhor ao que me refiro.

Gostava também de referir uma outra coisa. A luz corresponde à realidade do mundo que se cria para um filme, e para cada filme. Não corresponde à realidade da vida. Não estou certo ou errado, esta é a forma que intuitivamente a vejo, e que a gosto de pensar, para posteriormente a construir com a equipa.

Com um realizador como o João esta artificialidade pode sempre fazer parte da forma que queremos contar a história. Em cada filme um dispositivo de artificialidade diferente. Devido ao texto e à sua liberdade, pensei em construir essa ambiguidade que falei, através da luz em cada plano sequência. O meu princípio era por exemplo: na cena “X Ext. dia”, eu criava o dia, mas de uma forma que poderá ter zonas que a câmara percorre dentro do mesmo plano que podem parecer noite, ou fim de dia …. e tornar a voltar ao dia; há um momento que numa parte específica de um plano temos, noite e dia a conviverem no mesmo momento na imagem.

Nas cenas finais a coisa era mais “noite” ou mais “dia”, sem os misturar tanto dentro do mesmo plano, mas aí deixei a cor conquistar o seu espaço. Fazendo que tanto a “noite”, como o “dia”, ficassem mais definidos. Agora era o momento de convocar a cor e a sua ambiguidade pela forma que a usamos. Para quem viu o filme, pode saber que é o plano inaugural que exibe a paleta de cores, essa ideia para mim tinha de se executar…nesse plano vemos o espaço do


estúdio, os projetores, e no momento final do plano, e naquela mesma rua, já a transformei noutra. Nestas zonas do décor marcadas num mesmo plano, por dia, noite, cor, etc, não foi utilizado o esquema do “One From the Heart”, em que a luz muda, a cor muda, através de uma mesa de luz, atribuindo por isso mesmo, outro tipo de artificialidade e ambiguidade.


Esse filme também foi para nós uma referência, mas tem um mundo e uma identidade tão próprias, que não se pode repetir, copiar, ou mesmo ambicionar a isso, pode-se sim usá-lo como inspiração para muitas outras coisas. Esta foi a minha/nossa forma, de pensar para construir este mundo, muito específico neste filme. Ou seja, esta estratégia, ou abordagem nunca mais a farei. Só aqui faz sentido e só aqui ganhou vida.


AIP – A questão orçamental dos filmes é sempre uma condicionante para a imagem não é? Do que que tiveram que abdicar para viabilizar o filme?


JOÃO RIBEIRO - O que perguntas, já está abordado na primeira resposta, fazemos com aquilo que temos, não encaro isso como condicionamento (claro que o é), como uma espécie de condenação constante ou de derrota… se tivesse isto, faria aquilo, etc, etc… Penso que isso não seria pior ou melhor mas sim outra coisa, algo diferente. Sendo mais objetivo e como estávamos a trabalhar numa antiga fábrica em Azeitão, (fizemos lá “Os Maias”, uma série chamada Odisseia, francesa também foi lá feita,), não existe uma teia. Gostaria de ter tido mais cherry pickers para a luz estar mais alta e não ter sombras tão longas. Tínhamos uma, atrás do painel que fechava a rua com um contra luz filtrado em amarelo. Ter a fonte mais alta faz-nos controlar melhor a modulação da luz. Se gostaria de ter uma teia de estúdio, não, não gostaria, a luz poderia ficar demasiado alta. Como trabalho com luz mais direta isso seria mau quanto a mim. Depois o facto do chão não estar em condições em vários locais e não ter sido nivelado. Essas são as duas coisas que gostaria de ter tido.



AIP – Os quadros são definidos pelo João?


JOÃO RIBEIRO - O enquadramento vai-se desenhando ao longo do ensaio de cada plano sequência. Usamos sempre a 35mm, e quem define não é só o João …sou eu e o Manel Ramos também. Poderei igualmente dizer que os atores também enquadram, quando propõem uma mise-en-scène nova, a construção dos decores também nos obriga a optar porque condiciona. É por isso um verdadeiro trabalho de equipa. O desenho dos planos feito na pré-produção entre mim e o João, confronta-se agora com a realidade de todos os fatores. Por isso adapta-se e transforma-se.


AIP - Que equipamento usaste? Câmara e objetivas…


JOÃO RIBEIRO - A Leica 35mm f2.8, Elmarit-R foi a única lente que usamos. A câmara foi a mesma do filme anterior, a Sony A7S II. O projetor mais forte era um 6kw, depois tínhamos dois 4kw e uns quantos 1.2kw, 575W, … e incandescência, 2000W, dedolights, 800W, 650W, pares de 64… um skypanel e um carpet também, que quase não foram a jogo, 2 asteras para o bar…não gosto nada e depois até os tirei…depois foi a Magnum, em que o Manel construiu uns apoios de madeira para os meus pés rodarem com mais segurança, havia movimentos mesmo difíceis e isso foi fundamental para eu os executar. Havia um que tínhamos 19 posições de câmara diferentes! Rotações a 180 e 360 graus. O Manel Ramos foi um rei no seu bailado constante e na adaptação a novas posições que os atores faziam, não “indo à marca” estabelecida previamente. A luz pontual em planos de 10, 12 minutos não é fácil e requer um rigor absoluto no seu posicionamento, ângulo, cortes. Depois o rigor dos atores na questão das marcas, na sombra que um ator faz a outro … nisso foram incansáveis, da forma como se adaptaram, às condicionantes. Quero também falar do som. O extraordinário trabalho do Francisco Veloso e do David Badalo a perchar tantos quadros diferentes dentro do mesmo plano, com sombras a poderem entrar, a ir buscar as falas, sem entrar em campo…muito bem, bravo! O que tem de incrível o plano sequência é que toda a equipa está concentrada naquele momento…todos nós estamos na tensão, na energia, na expectativa do fluir e do sucesso do plano. Dos atores, até ao Bolas, assistente de plateau, a mudar e por coisas durante o plano, todos, mas todos, participam naquele momento. Digamos que o plano sequência traz uma disciplina ao plateau, que era típica do cinema feito à muitos anos atrás…segundo o João “o tempo em que só se ouviam as moscas, e o plateau era uma catedral”…Todos são por estas razões convocados para a execução e sucesso de cada plano.



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