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“O olho tem que escutar antes de olhar” Pedro J. Marques sobre «A Última Floresta»


O recente vencedor do prémio de Melhor Direção de Fotografia para documentário foi atribuído à obra « A Última Floresta» fotografado pelo nosso membro Pedro J. Marquez e realizado por Luiz Bolognesi. O documentário assenta sobre uma comunidade indígena yanomami que vive na parte norte do Brasil que luta pela preservação da sua cultura e da integridade do seu território. A comunidade é constantemente ameaçada pelos garimpeiros e pelos pesquisadores de ouro e também pelas promessas do «homem branco» que atraiem os indígenas mais novos. É este o ambiente que rodeia esta obra documental, magistralmente filmada por Pedro J. Marquez. Socorrendo-se apenas de luz natural Pedro conseguiu capturar imagens de grande beleza, com imagens suaves de uma delicadeza ímpar. Fizemos-lhe uma entrevista para saber um pouco mais deste projeto

AIP - Mais uma vez muitos parabéns pelo prémio recebido com o teu trabalho no documentário «A Última Floresta». Não é fácil ir para a Amazónia e fazer um filme documental, como te preparaste antes de ir? Estavas consciente das condições climáticas que ias encontrar?

PEDRO - Estou muito agradecido pelo prémio, e pelo facto de poder ter mostrado o filme aos companheiros e companheiras da AIP. Eu já tinha filmado na Amazónia, com o mesmo realizador, um outro filme “Ex-Shaman”, na terra dos Paiter Surui. Pelo que esse primeiro contacto foi essencial para nos preparar para a filmagem de “A Última Floresta”, o qual sabíamos que iria a ser ainda mais desafiante porque iriamos a estar mais isolados. Este tipo de cinema é uma experiência vital extrema, a única coisa que sabes é que vamos enfrentar condições nunca antes experimentado, pelo que boa vontade e capacidade de adaptação é fundamental. Por isso ter tido a mesma equipa que no filme anterior, que é um grupo muito especial, muito comprometido, que alinham neste tipo de aventuras com leveza e entusiasmo contagiante, é o que é realmente fundamental. Já em termos mais práticos é muito importante contar com uma produtora que esteja habituada a este tipo de filmagens e que ajuda a prever as necessidades mais essenciais. No nosso caso tínhamos a Carol Fernandes, que mora em Manaus, e tem uma produtora com muita experiência neste tipo de produções e que foi um talento insubstituível.

AIP – Mesmo tratando-se de um documentário, nunca perdes o sentido de composição e também quase sempre colocas a câmara na posição que beneficia para o melhor ângulo de luz. Isso quer dizer que o trabalho com o realizador Luiz foi muito preparado?

PEDRO - A minha preparação com Luiz para este filme vem de muitos anos atrás, de quando nos conhecemos para preparar “Ex-Shaman” em 2016. O Luiz, além de ser um dos cineastas mais importantes do Brasil, é formado em Antropologia, pelo que trabalhar com ele é uma aprendizagem constante sobre os povos indígenas. Com ele aprendi o conceito de etnocentrismo e como é que podemos lutar contra ele com o cinema. Desde o primeiro filme que filmamos juntos, o Luiz me deixou muito claro que queria retratar a cultura desses povos com um cuidado estético, ir na procura da beleza para trazer dignidade e admiração. A proposta era que estética fosse usada para ajudar a criar empatia.

AIP – Que equipamento levaste para a amazónia? Tinhas confiança no equipamento escolhido?

PEDRO - Para a filmagem na Amazónia a câmara foi uma ARRI AMIRA com as lentes Zeiss 1.3 Super Speed. Era importante ter umas lentes com muita abertura porque sabia que iríamos filmar em condições de luz extremas, ao mesmo tempo essas lentes, com diafragmas mais fechados, têm um ótimo recorte, sem ser duras demais. Para a sequências à noite com fogo usamos a Sony @7s com as mesmas lentes e filmamos entre 32.000 e 64.000 ISO de sensibilidade. Para decidir esses valores tínhamos feito testes, e que testamos em grande ecrã, donde reparamos que mesmo que o nível de ruído era muito alto, muito presente, estávamos a conseguir uma plasticidade muito especial, quase magica e que nos iria permitir filmar qualquer situação à noite na aldeia, sem a necessidade de aumentar nenhum nível de luz existente.

AIP – Quanto tempo estiveram em rodagem? Onde ficaram? Em tendas? Como funcionava o carregamento de baterias?

PEDRO - Foram cinco semanas de filmagem na Terra Yanomamí, isolados no meio da floresta, a uma hora e meia de avião da “cidade branca”mais próxima. A nossa rotina lá tinha uma questão, que a princípio poderia parecer um problema, mas que acho que foi ótimo, que é o facto de que nós não morávamos na aldeia Watoriki com os Yanomamis. A equipa dormia num posto de saúde indígena, que estava a 2,5 km de distância, donde tinha um pequeno gerador e uma construção muito simples em onde dormíamos em tendas e podíamos carregar as baterias, literal e metaforicamente falando. Depois a cada dia tínhamos que andar pela floresta até chegar à aldeia, no mínimo 5 km, mas era sempre mais, claro. Essa caminhada tornou-se um ritual, a gente conversava, ou não, tinha dias que fazíamos em silêncio, mas sempre acompanhados por algum Yanomami para nos proteger dos possíveis perigos. Essa caminhada era como um exercício de meditação para nos prepararmos para filmar, e para nos lembrar quanto éramos privilegiados de chegar onde a gente chegava cada dia, nesse lugar maravilhoso e recôndito que é a aldeia Watoriki.




AIP – Antes de irem filmar fizeram alguma réperage antes?

PEDRO - O Luiz e a Carol (produção), passaram umas semanas na aldeia, meses antes das filmagens, para conhecer a comunidade e começar e decidir que personagens e historias iriam a ser contadas, mas eu não fui. Perguntaram se queria que fizessem fotos específicas dos lugares, mas eu preferi não ter. Queria conhecer a aldeia com os meus próprios olhos, ter essa experiencia pessoalmente. O que aconteceu foi que no primeiro dia não filmamos nada, e nos dias seguintes muito pouco o que permitiu ir conhecendo o lugar e as pessoas, respeitando o ritmo da comunidade. Pelo que por vezes até tínhamos tempo para fazer réperage e poder escolher o lugar e a hora certa antes de filmar.

AIP - As imagens são muito belas e captadas em horas especificas do dia foi resultado do trabalho colaborativo com o realizador?

PEDRO - Davi Kopenawa, líder e Shaman da comunidade, e também co-roteirista do filme, queria antes de tudo mostrar a beleza, a força e a resistência do seu povo. Eles são grandes guerreiros que estão há anos a lutar e a viver em harmonia entre eles. Existe uma beleza na sua cultura que é menosprezada pelo povo da cidade que os trata como “selvagens”. Essa motivação política, que também estava no Luiz, foi o grande motor da construção da estética do filme. Não estávamos simplesmente a procura do “beauty shot” o de um olhar exótico, estávamos a procura da representação digna e bela de uma cultura ancestral que devia ser respeitada e admirada. Esse era o nosso grande objetivo estético. Em termos práticos, para isso foi muito importante poder organizar as rodagens em função da luz, claro, mas sobretudo o poder de ter tempo para filmagem, a calma, para decidir qual é o melhor enquadramento para contar o que a gente quer contar. Eu gosto muito de uma frase que fala o fotografo americano Robert Frank, que diz que “o olho tem que escutar antes de olhar”. Para mim isso é fundamental, ter um tempo antes de colocar a câmara para sentir o que está a acontecer na cena, para que a posição da câmara não seja um ato mecânico e sim uma consequência de essa escuta previa.

AIP – O filme tem imagens muito dóceis, sente-se uma enorme sensibilidade por parte do operador no momento da filmagem. Em documentário essa é uma característica muito importante que é atribuído ao operador de câmara e neste filme sentiste essa liberdade por parte do realizador para também aplicar essa sensibilidade do enquadramento conjugado com a luz?

PEDRO - Sim, a confiança é a base do relacionamento com o realizador/a, e deve ser mutua, porque esse encontro é lindo, e nós DF's precisamos para nos potencializar porque uma imagem não vale nada se não faz sentido para o filme. Algumas semanas antes de ir para o Brasil para começar a filmar, morreu a realizadora francesa Agnès Varda, que eu admiro muito. Entre as coisas que saíram na imprensa, li uma frase dela que levei como grande referência para o filme: “Só se pode fazer cinema com empatia e amor”. Eu acredito que isso se transmite nas imagens muito mais do que o movimento da câmara ou a posição do tripé.

AIP – Tens algo mais que gostarias de referir sobre este filme?

PEDRO - Gostaria de convidar a todo o mundo que não assistiu o filme ainda, a fazê-lo, porque é uma grande viagem a um mundo desconhecido para nos, gente da cidade, e do qual temos tanto que apreender. Esta disponível na Netflix.



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