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«Não é um filme sobre a pintura, é um filme sobre a vida»

Rui Poças aip, ABC

(Fotografia Rui Poças)

Amadeo é a mais recente longa-metragem do realizador Vicente Alves do Ó. Este filme biográfico trata três fases da vida do aclamado pintor Modernista português Amadeo de Souza-Cardoso. Natural de Amarante, é-nos dado a conhecer o amor incondicional pela sua mulher, Lucie Pecetto, as preocupações e apoio da família; o que viveu na primeira grande exposição de pintura; momentos de festa e tertúlia entre artistas de renome em Paris e no último momento, a sua morte. Aos 31 anos morre em Espinho com gripe espanhola.

É um filme que se destaca por tomar uma abordagem de como Amadeo encarava a vida, onde conhecemos os seus sonhos e as suas angústias e, segundo o Diretor de Fotografia o nosso associado, Rui Poças, este não é um filme que se debruça sobre o espólio do pintor, mas da sua vida.

Numa entrevista à aip, Rui Poças fala-nos mais sobre o filme e explica-nos como foi trabalhar neste projeto.


(Fotografia Patrícia Andrade)

Para si, qual é o principal desafio em filmar um filme de época como este?

Vejo dois tipos de desafios: o desafio propriamente técnico, que é o de registar materiais no nosso tempo presente e fazê-los viver como se estivessem a existir há um século atrás. É um desafio na escolha de lugares, da direção de arte, no vestuário, … a que a fotografia não é alheia. Neste filme, recorremos também a alguns efeitos visuais, a cargo do talentoso Jorge Carvalho, para fazer reviver espaços extintos como o Passos Manuel, no Porto, ou integrar elementos dos anos 10 do século passado. Esse esforço em denotar a época é o que faz com que o espetador acredite, dentro da lógica do cinema, que as imagens que está a ver pertencem a um tempo passado.

O outro desafio para mim é, apesar de pretender retratar uma época passada, dar-lhe uma característica que o una ao nosso tempo, ao olhar do século XXI. Acho que se os filmes de época se fizessem sempre da mesma maneira, se cumprissem sempre os mesmos códigos e convenções, seria um grande aborrecimento. Vejam-se os filmes dos anos 50, por exemplo, retratando épocas passadas como a Idade Média ou o Antigo Egipto. Para além da história do filme, o que se vê é uma visão de uma época sobre outra época. Eu acho esse croché de projeções e convenções maravilhoso. Ele diz mais sobre a própria época do que a época retratada, muitas vezes. Penso que é para isso que no fundo o cinema serve: falar de nós, do nosso tempo. Em última instância, mesmo um filme de ficção poder ser visto em parte como um documentário, porque nele está inscrita uma forma particular de ver o mundo, com a visão do seu próprio tempo.


Qual foi o ponto de partida e como é que se definiu a escolha da abordagem e estética cinematográfica entre o Diretor de Fotografia (Rui Poças) e o Realizador (Vicente Alves do Ó)?

Como tínhamos já a experiência de trabalhar em colaboração de um filme anterior, a abordagem e definição de conceitos para este filme foi muito fácil de afinar. Habitualmente partimos do guião, da sua estrutura, e definimos objetivos para cada parte do filme. O facto de se tratar da história pessoal de um pintor que se desenvolve em diferentes territórios e épocas deu-nos algumas pistas logo desde o início.


(Fotografia Rui Poças)

No filme, existe ausência de simbolismos quanto aos quadros de Amadeo de Souza-Cardoso. É possível que isso tenha representado um desafio acrescido de alguma forma na imagem para a eficácia da narrativa?

Este filme debruça-se mais sobre momentos da vida pessoal do pintor do que sobre a sua obra propriamente dita. Não é um filme sobre a pintura, é um filme sobre a vida. Por isso não pretendi que a fotografia do filme sugerisse a arte do artista. Quando muito, nalguns momentos, existe uma presença que ultrapassa o domínio diegético, como o caso da cena de Amadeo e Sonia Delaunay, artistas modernistas e declaradamente antiacadémicos, em conflito ideológico com a pintura clássica, num ambiente dissonante para o seu gosto, num museu de pintura, “quadro de fundo” duma cena de atrito entre os dois personagens.

Filmámos uma cena em que os quadros do pintor, reproduções absolutamente fidedignas e genialmente bem feitas pela equipa de arte do filme, adquiriam uma importância dramática muito grande. Aí sim, filmámos a pintura de Amadeo de Souza-Cardoso na sua pujança. Mas a cena acabou por não integrar a versão final do filme.


Foi referida uma intenção de homenagem ao pintor. De que forma é que se procedeu isso?

Na minha opinião, a principal homenagem a Amadeo no filme não se baseia na referência à sua obra pictórica. Bem vistas as coisas, ela fala por si, não precisa de nenhum filme que sublinhe a sua importância e potência. Amadeo foi um artista que estava em linha com a vanguarda mundial da sua época. O advento da Primeira Guerra Mundial afastou-o do epicentro da revolução artística em curso na Europa e mais tarde a sua morte prematura interrompeu um fluxo de criação artística sem paralelo entre os artistas portugueses. José Augusto França chamou-o por isso e por ter estado desaparecido do olhar sobre a arte do século XX de “A Lenda da Arte Moderna Portuguesa”, em 1956. A existência do filme presta homenagem à sua tenacidade, capacidade criativa e ao seu espírito artisticamente revolucionário sobretudo num contexto tão adverso como era o de Portugal nessa época.


(Fotografia Rui Poças)

O filme é colorido, a palete de cores é viva. No momento do flashback (1911) em Paris, quando se esperaria convencionalmente um ambiente mais frio, apercebemo-nos de que, adotou uma alteração do ponto de vista cromático para ainda mais quente que o momento anterior. Por que razão optou para o filme, uma luz carregada e mais quente?

O filme está dividido em três partes distintas, a que correspondem diferentes territórios e momentos da vida de Amadeo (Manhufe e Porto; Paris; e Espinho). Desde o início, pretendemos refletir na fotografia do filme os diferentes estados de espírito do personagem bem como os diferentes contextos em que ele se movia, em cada uma dessas partes. Assim, a primeira parte pretende ser colorida, variada, sugestionadamente rural e simultaneamente burguesa. A segunda, Paris, claramente alegre, feérica, mundana e energética. A montagem acabou por deixar muitos desses planos de fora, mas nessa sequência no momento da rodagem utilizámos movimentos de câmara bastante reforçados, imprimindo uma grande energia à imagem e aos acontecimentos (grande trabalho do operador de Steadicam Leandro Silva, infelizmente cortado na montagem). Finalmente, na terceira parte interessei-me em sugerir a presença da proximidade da morte, da pandemia, do medo, do “longo inverno” de que Amadeo fala. Nesta parte, como de resto em todo o filme, foi muito importante o trabalho desenvolvido em conjunto com o diretor de arte Artur Pinheiro, para obter o resultado pretendido. Como curiosidade, todos os interiores do filme foram rodados na mesma casa (em Sintra) graças ao tremendo trabalho de adaptação feito pela genial equipa de arte do filme.


Curiosamente numa entrevista frisou que para si, trabalhar na criação só valia a pena se fosse para criar algo de novo. No geral, como é que acha que trabalhou esse mesmo ponto neste projeto?

Este filme proporcionou-me a oportunidade de criar três linguagens diferentes para uma mesma história sendo que não podia perder de vista a unidade do filme como um todo. A chave para a forma de ainda assim manter um estilo para o filme foi-me dada pelo próprio guião, através da proximidade ao personagem principal, traduzindo o mais possível na imagem o seu estado de espírito: as angústias, as esperanças, os medos, as alegrias, todas as emoções pelas quais os personagens estariam a passar. Interpretadas de forma fotográfica, com a luz, as sombras, a composição, as cores, o movimento ou a ausência dele. A mim interessa-me a trabalhar a fotografia de um filme, como uma forma de ajudar a veicular ideias e sentimentos, provocar emoções e, antes de tudo, contar uma história, tal como o faz a música numa canção, um fundo onde encaixam as palavras da letra que é cantada. Tal como a música, a fotografia pode ilustrar o que se diz, como o pode contradizer ou acrescentar outro layer de informação.


Quanto ao último plano, dada a posição dos atores, será possível que tenha tido algum tipo de inspiração à célebre fotografia da Era Vitoriana post-mortem “Fading Away” (1858) de Henry Peach Robinson (imagem) ?


Que linda, essa referência. É muito curioso que observe essa semelhança de elementos. Não conhecia essa fotografia. Mas reconheço que quando sugeri o plano ao Vicente a presença da janela era claramente importante para mim, pelo que ela (peço desculpa pela presunção) semioticamente representa: a Luz, em contraste com o sombrio corpo que num sopro se despede da vida e, o “Céu” para onde o plano espiritual dos seres escapa para a eternidade, o que é bastante interessante considerando que se trata de um pintor, para quem a luz é a principal matéria. Outra coisa de que gosto muito desse plano do filme é de, na sua duração, vermos que Amadeo respira, que está vivo, mas não termos a certeza se Lucie está viva. A fotografia que refere provoca um eco formidável com esta interpretação!


O filme não tem praticamente movimentos de câmara. Os planos fixos foi uma opção?

Parte importante da narrativa do filme é a história de um homem preso a um lugar onde não quer estar, a uma realidade atávica e atrasada. Só Paris representa o inverso: a dinâmica, o sonho, o empolgamento, a vida que pulsa, as cores que são mais do que a realidade. É a liberdade, por contraste à prisão que de certa forma significou a vivência de Amadeo em Portugal durante alguns anos. O próprio personagem fala desse encarceramento e da sua vontade de movimento. Digamos que os planos fixos ajudam de certa forma a entendermos e sentirmos o que Amadeo sente.


(Fotografia Rui Poças)

Usou fortes contraluzes, luz marcada, não diria direta e dura mas grande definição mesmo nos planos noturnos em interiores. Optou por este tipo de luz pontual como? Terá sido por alguma razão, nomeadamente o tamanho do espaço?

Claro que na preparação do filme, tratando-se de um pintor, fiz uma “visita” intensiva à sua obra. E ainda que desde sempre não me parecesse adequado fazer uma aproximação ou citação sequer ao seu trabalho pictórico (como referi, este não é um filme sobre a sua pintura) verifiquei uma coisa que é constante na sua obra e que acabei por trazer discretamente para o filme (espero eu): a vontade que ele tinha de demarcar os limites de cada forma, na sua pintura e também no desenho. Gostei de utilizar esse equivalente na fotografia a que se convencionou chamar La Ligne Claire, técnica popularizada na banda desenhada desde inícios dos anos 20 e recorrentemente utilizada por muitos pintores modernistas contemporâneos de Amadeo. De resto, é sabido que artistas do círculo parisiense de Amadeo de Souza-Cardoso foram influenciados pelas abordagens pictóricas da banda-desenhada, sendo o caso mais evidente o de Pablo Picasso que, iniciado pela colecionadora Gertrude Stein, foi grande seguidor de autores de banda-desenhada, particularmente norte-americanos.


Por último, que câmara e que objetivas utilizou? Quem fez parte da sua equipa de câmara, maquinaria e iluminação?

Utilizei maioritariamente um set de objetivas clássicas: as Zeiss Super Speed. Pareceram-me a melhor escolha para obter o resultado fotográfico que procurava, em conjugação com a Alexa Mini: uma boa definição na imagem sem um recorte e detalhe demasiado acentuados. Outra coisa que pretendi evitar foi o aspeto de “papel Couché” que caracteriza o resultado de algumas excelentes objetivas mais recentes, coisa que é excelente em muitos trabalhos, mas que me pareceu inadequada para o estilo que quis criar.

Tive a sorte e o privilégio de ser acompanhado por usuais colegas de trabalho:

Lisa Persson, Nuno Ferreira, Gonçalo Pedro, Barbara Mau, Ahmed Abdelrazek e Leandro Silva na equipa de câmara.

José Manuel Rodrigues, Tó Jó, Daniel Mendonça e João Almeida na iluminação.

Carlos Santos, José Loureiro, Fábio Alas na maquinaria.

Jorge Carvalho nos VFX.

Marco Amaral no Color Grading.

Entrevista de Joana Garcia



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