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Edgar Moura ABC - Membro Honorário aip

«O Director de fotografia é quem lida com luz e câmera. Qualquer outra definição definirá outra profissão»



Edgar Moura será o nosso homenageado este ano durante a cerimónia de entrega de prémios da aip que se realiza no dia 24 de fevereiro na Casa do Alentejo.

Para marcar esta ocasião decidimos realizar uma entrevista que foi conduzida por Rui Poças aip ABC e de Leoner Barb. A publicação em papel teve o apoio da Universidade Lusófona e o desenho gráfico teve a cargo de Mário Melo Costa.


A Associação de Imagem Portuguesa deliberou que em 2023 fosse feita uma homenagem ao diretor de fotografia Edgar Moura em parceria com a Universidade Lusófona como reconhecimento da importância do seu trabalho para o cinema português. No seguimento desta homenagem, no primeiro semestre de 2022, desafiámos o Edgar a participar numa entrevista por escrito, que se iria debruçar sobre o seu trabalho enquanto diretor de fotografia.

Edgar aceitou a proposta de bom grado, à qual respondeu de forma invulgar. Frequentemente, optou por responder com citações dos seus próprios livros “50 Anos Luz, Câmera e Ação” e “Da Cor”, proporcionando o acesso a informação valiosa, com um grau notável de profundidade.


Biografia


Edgar Moura é um diretor de fotografia, operador de câmara, fotógrafo, escritor e professor brasileiro. Nasce em 1948 no Rio de Janeiro, onde vinte anos mais tarde começa a estudar quimica, decisão que não perdura, ao iniciar um estágio em fotografia, no jornal Última Hora. Durante este período, Moura é introduzido ao fotojornalismo, acabando por criar noções que transporta consigo para o cinema. Após a sua experiência no jornal, decide retomar os estudos, desta vez na área da imagem para cinema e fotografia, no Institut National Supérieur des Arts du Spetacle, em Bruxelas. Durante os estudos, conheceu Raymond Depardon, diretor da agência fotográfica Gamma, da qual rapidamente passou a fazer parte. Foi através da Gamma que conhece Ruy Guerra, com quem brevemente vem a trabalhar.

Depois da sua graduação, em 1972, regressa para o Brasil, onde parte de seguida para a realização da sua primeira curta-metragem “Linha de Mão”, que se segue de várias outras. Em 1976, é convidado por Ruy Guerra para fazer a direção de fotografia da sua longa “A Queda”. Moura aceita a proposta, que se torna num marco da sua carreira, abrindo portas a novas oportunidades de trabalho. Simultaneamente, começa a dar aulas de fotografia na Universidade Federal Fluminense e no Instituto Nacional de Cinema de Moçambique.

“Gaijin” (1979); “Bar Esperança, o Último Que Fecha” (1983); “Cabra Marcado para Morrer” (1984); “A hora da estrela” (1985); e “Kuarup” (1989) são alguns exemplos de relevo da obra de Edgar Moura enquanto diretor de fotografia, que conta com mais de 50 filmes.

Também tem sucesso no mundo da televisão, com a fotografia de séries como Primo Basílio (1988); Anos Rebeldes (1992); “A Vida Como Ela É” (1996) e “Metamorphoses” (2004).

Moura estabelece uma ligação forte ao cinema português em 1993, com “Encontros Imperfeitos”, filme realizado por Jorge Marecos Duarte. Este percurso da sua carreira é marcado por obras como “Zéfiro” (1993); “Jaime” (1999); “Peixe-Lua” (2000); “Camarate” (2001); “A Outra Margem” (2007) e “Viagem a Portugal” (2011). Acaba por criar uma parceria recorrente com o realizador Luís Filipe Rocha, com quem já trabalhou em 4 filmes: “Sinais de Fogo” (1995); “A Passagem da Noite” (2003) e os acima mencionados “Camarate” e “A Outra Margem”.

Em 1985 publica o seu primeiro livro “Câmara na Mão: Som Direto e Informação”. Em 2001 lança “50 Anos Luz, Câmera e Ação”, que expõe uma abordagem extensa e detalhada da direção de fotografia, de uma perspetiva tanto técnica como pessoal. “Da Cor” é publicado em 2016, no qual aprofunda o tema da correção de cor. “No Ar” é o seu projeto mais recente, que não chegou a ser terminado, em que aborda a direção de fotografia, na sua vertente televisiva.


ENTREVISTA

1) São muitos anos de cinema para contar. Mas como

todas as estórias, sempre existe um início. Como surgiu o cinema na sua vida? E como aconteceu que um dia se tenha tornado diretor de fotografia?


Eu, Edgar, diria: Surgiu na realidade primeiro na fotografia.


Edgar avança com um excerto do seu livro “Da Cor”, onde partilha dados biográficos:


(...) Frequentei a Escola Nacional de Química. (“Pouco”, ouve-se “por trás da cortina”).

É verdade. Estudei e passei (em tudo, bem) no vestibular. Depois frequentei (pouco, tudo bem) a Escola de Química da Praia Vermelha. Em vez de estudar, passei 1968 fotografando as passeatas dos meus colegas da ENQ, na Cinelândia. Fizemos tanta “baderna” (como os militares chamavam as manifestações), que acabamos exilados por eles, os militares do governo, no deserto que era na Ilha do Fundão, onde a Faculdade de Química funciona até hoje. Fomos assim afastados: meus colegas, do centro da cidade e eu, da química. (...)


“DA COR” página 185


Início no fotojornalismo / Jornal “Última Hora”

O Teste

Entrei no jornal Última Hora. Onde hoje é a zona. Subi as escadas até o Departamento de Fotografia, que ficava em baixo da escada (do segundo andar) e apresentei-me ao Chefe da Fotografia. “Edgar”. “Edgar meu filho?”. Minha mãe era colunista de moda do jornal e desesperada por eu não dar para a Química, embora tivesse passado muito bem no vestibular, me arranjou um lugar na fotografia do jornal, mas... tinha que passar por um teste. “Vamos ver se esse filhinho de mamãe dá pra coisa” disse o chefe. Demócrito, o chefe, olhou para minha câmera e fez cara feia (era uma Canon, repórter sério, em 1968, usava Nikon... e F!). Levou-me para a varanda e sem mais, perguntou: “Qual diafragma?”. E eu, meio tímido, intimidado, me enchi de coragem e tartamudeei: “Qual filme?”. Ouvi ele resmungar “Boa” e disse: “Tri X”. Essa foi mole: “500 com 11” (assim estava escrito na tabela da caixinha do filme: “Sol, 500/11”). E ele: “Interiores?”. Eu: “30/tudo aberto”. Ele: “OK, e vê se não treme. Tá contratado.”


Cursei a escola de cinema INSAS na Bélgica.


Edgar durante os estudos na INSAS e o seu diploma

2) A que se deve a filmografia portuguesa de Edgar? Como se iniciou esse ciclo profissional?


Edgar descreveu o início do seu trabalho em Portugal, no seu livro “50 Anos Luz, Câmera e Ação”:


Somos todos da Lusitânia!

Entramos em Roma pela porta dos fundos! Dava bem atrás do trono de César,

Éramos um grupo de portugueses, e só eu de brasileiro no meio. César se assustou, derrubou a cadeira, tropeçou e desceu correndo as escadarias para ir ficar no meio do povo que estava no fórum. Os romanos foram se juntando para avaliar melhor aquele grupo de estrangeiros malvestidos e cansados. Ficamos com medo. Eu mais do que os outros; afinal, eram todos portugueses, e, sendo assim, cidadãos do Império Romano. Eu não; era um bárbaro imigrante clandestino trabalhando para eles. Antes que alguém tivesse tempo de fazer alguma coisa, avancei, levantei a mão, como convém a um cidadão romano, e saudei-o: “Ave, César, somos todos da Lusitânia”. O ambiente se desanuviou e, para garantir que estava tudo bem mesmo, puxei uma conversinha: “Como são os mores em Roma?” “São liberais”, disse-me um velho sentando-se ao meu lado, na escadaria de mármore. Era um sonho, claro, mas mostra bem como se sente vulnerável e isolado um estrangeiro que trabalha, sozinho, no meio de um grupo de pessoas do lugar. É preciso fazer algo de bom para ser aceito. No meu caso, foi um bom copião (“copião” em brasileiro, “rushes’ em francês e “daylies” em inglês).


Em 1991, dei o salto do Atlântico. Fui fazer meu primeiro filme de longa-metragem na Europa. Bem, quase na Europa. Foi em Portugal. Não é Europa, mas também não é Brasil. É quase Europa, e, com certeza, não é Brasil. Qualquer brasileiro tem esse sentimento em relação a Portugal. É um lugar estrangeiro, mas nem tanto. Acontece que para quem está indo viajar de verdade parece um grande salto. Imagino que meus colegas fotógrafos ficaram com inveja. Só uma ponta, pois eu ia filmar num estrangeiro estranho, em português. Se não era nem em inglês nem em francês, era estrangeiro; só um pouco, porém. Assim sendo, não valia como carreira internacional. Não havia razão para ter uma inveja concreta. Nunca ninguém ficará mais ou menos famoso no Brasil por fazer sucesso em Portugal. Portugal é muito normal. Jô Soares fez sucesso em Portugal. Normal. Chico Buarque estourou em Lisboa. Normal. A Globo tem quatro novelas no ar em Portugal. Tudo normal. Agora, tocasse ontem, numa rádio de subúrbio de Paris, num programinha às sete da manhã, uma música da Elba, e logo teríamos notícias do sucesso do Brasil no estrangeiro; esse, sim, na Europa. Europa, França e Bahia, ou nada. Concretamente, porém, ir lá filmar, ou cantar, ou atuar é outra coisa. “De perto, ninguém é normal.” Depois do tiro de largada, temos que competir como se fora nas Olimpíadas. Não podemos, depois de começar a corrida, fingir que não estávamos correndo para valer, que só estávamos ali para dar uma olhada, com um certo ar blasé. Não. Entramos, mesmo que seja numa pelada de esquina, aquilo vira o centro do mundo, fazemos de tudo para ganhar. Então, desembarquei em Portugal a sério. Esperavam-me mais sérios ainda. A Associação dos Fotógrafos Portugueses (sem piada) me esperava com um abaixo-assinado contra a importação de “técnicos desnecessários”, o que causou estranheza ao meu produtor português (sem piada). Afinal, em Portugal, os filmes são feitos por fotógrafos de toda a Europa. Os filmes portugueses são fotografados por franceses e alemães, por ingleses e por espanhóis. Os diretores portugueses tratam os fotógrafos locais aos pontapés. Quando eu cheguei, até o russo do Vive, morre, renasce, que não falava português, nem francês, nem inglês, nem nenhuma língua com a qual pudesse se comunicar com o seu diretor, estava lá filmando. Todos sem problema nenhum. Mas brasileiro, para eles, era um pouco demais!


Edgar no INSAS junto com o realizador José Álvaro Morais em 1970 fazendo um teste de “Profundidade de Campo”. Teste de profundidade de campo

Experimentei, para raciocinar, colocar-me na posição deles para ver se era possível entender o porquê. Nesse caso, foi facílimo. No Brasil também achamos normal que sejam importados americanos e ingleses para fotografar. Sobretudo nos comerciais de propaganda. Americanos, então, são considerados os melhores estrangeiros de verdade. São superiores, são altos, brancos, anglos, falam inglês, aquela língua das grandes caras e das grandes telas. Não se diz nem “Chamamos tal bom fotógrafo, que fez tal bom filme”. Não. Diz-se: “Fulano trouxe um fotógrafo americano”. Ponto. É como se fosse uma categoria de fotógrafo. Americano. Com as mulheres e namoradas, dá-se o mesmo. O cara está namorando uma francesa. Não interessa se é bonita ou feia, inteligente ou chata, loura ou burra. É francesa. Então, deve ser boa. Esquecemos que, como os vinhos e os revolucionários, só se exporta o que é bom ou ruim demais para o consumo interno. É o mesmo risco de comprar o produto estrangeiro pelo correio: não dá para experimentar a mercadoria antes. Comprou, vai ter que achar bom. Sendo assim, imagine agora se um diretor brasileiro convidasse um fotógrafo “africano” da Zambímbia, em vez de um americano, para vir fazer a fotografia do seu filme de longa-metragem. Escândalo! Seria recebido, se fôssemos um país sério como Portugal (sem piada), com um manifesto da ASC local contra a vinda de técnicos desnecessários. É, é compreensível. Tão brasileiro, tão português. Senti-me em casa. Mas era necessário, então, justificar o convite. Não se podia vir de tão longe sendo tão igual. Eu teria que fazer melhor, ser melhor. Não haveria justificativa para me trazer se não fosse para não fazer melhor do que os portugueses eram capazes de fazer. Eu teria de ser vinho do primeiro tipo, citado acima, bom para a exportação por ter sido bom no local. Essa situação, em que se tem de mostrar serviço, não é muito propícia à criação artística, porque causa muita tensão. E sem invenção na criação, não há excelência. É verdade que a pressão era pouca e nem vinha dos produtores que pagavam o meu salário e a hospedagem. Eles eram meus amigos do tempo de escola da Bélgica e tinham boa vontade e confiança. Ninguém me pedia que excedesse. Era suficiente fazer o normal. Nem o filme era grande, nem grande era a pretensão do roteiro. Era um filme normal, de oito semanas. Praticamente um filme para a televisão.

A pressão para fazer melhor era interior, vinha de mim mesmo, e com o tempo reconheci essa pressão como um dos motores da profissão de diretor de fotografia.

Afinal, a preocupação com o ego pop, ou seja, com o fato de aparecer ou não em revistas e jornais, não é a preponderante entre profissionais que não dependem do público, como é o caso dos diretores de fotografia. O que é grande nos profissionais que são executores e não autores é o superego, aquele componente da cabeça freudiana que é o responsável pelo bom comportamento social, o pai satisfeito com o desempenho do seu filho. É da aceitação do seu trabalho pelos superiores mais próximos que se nutre o fotógrafo. Os fotógrafos vivem da satisfação do diretor com a dedicação ao seu filme. O cerne da profissão da fotografia é a satisfação da direção. Truffaut, de novo, acertou na mosca ao dar uma única fala ao seu diretor de fotografia no filme A noite americana. No fim do filme, Truffaut, que faz ele mesmo o papel do diretor do filme dentro do filme, agradece a Pierre William Glenn, seu diretor de fotografia de verdade, que também faz seu próprio papel no filme, pela boa fotografia: “Obrigado, fiquei muito satisfeito com seu trabalho”. Ao que o fotógrafo responde: “Fico satisfeito que você tenha ficado satisfeito”. As boas críticas sobre a bela fotografia que eventualmente sairão nos jornais e os eventuais prêmios em festivais de cinema nem se comparam à aceitação do trabalho do fotógrafo pelo diretor. É dessa aceitação que depende o sono e o bom humor do fotógrafo, e, é claro, os futuros trabalhos em conjunto.


“50 ANOS LUZ, Câmera e Ação” página 301



Edgar a operar numa grua, no jardim do Morro. (Col. Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema)

3) O cinema é uma arte contributiva, onde cada sector, cada função contribui com uma parte da execução e criação. Um dos participantes deste processo que mais contribui criativamente em particular no momento da rodagem, mas não só, é o diretor de fotografia. Nesse sentido considera que o DF poderia ser considerado um co-autor, ou pelo menos atribuída uma importância clara no processo criativo, para além da sua contribuição técnica?


Através de excertos do seu livro “50 Anos Luz, Câmera e Ação”, Edgar destaca o quão fulcral é o papel da fotografia:

Parte I

A perenidade da fotografia


So long as man can breathe or eyes can see,

So long live this, and this gives life to thee

Shakespeare, Soneto XVIII


Nem Deus pôs a lua no céu para que os homens aprendessem

a fotografar, nem Shakespeare escreveu esses versos sobre a

perenidade da fotografia para nos ajudar. Mas é como se fora,

pois, olhando a lua, nela se verá tudo que a luz pode fazer

sobre um rosto. E quem é capaz de ver isso no céu sempre

verá o que se pode fazer com ela, a luz (...)

“50 ANOS LUZ” página 25



(...) Enquanto houver gente e olhos, isso viverá. “Isso”, embora ele não soubesse do que estava falando, é evidentemente a fotografia. Não a fotografia acidental do lambe lambe da esquina, que fotografa o que pode e tem como resultado o acaso, e sim aquela fotografia que Storaro gosta de citar, o photo-grafar. O escrever com a luz. Só que o sentido que estou usando aqui não é o do Storaro, que pretende escrever como se fosse co-autor do filme que faz. Uso no sentido que Shakespeare quis: enquanto houver olhos para ver Quer dizer: enquanto a luz passar por uma lente e tocar uma superfície photo-sensível, isso viverá. E isso quer dizer ter olhos para ver o efeito que a luz faz quando fere a superfície sensível (...)


“50 ANOS LUZ” página 26


Parte II


(...) Mas, afinal, quem faz um filme ser bom ou ruim? Primeiro, é o produtor. Depois, o roteirista. Concretamente, fisicamente, quem faz o roteiro virar filme, através do produtor, é o tripé diretor (realizador), diretor de arte, diretor de fotografia. Quando o filme é bom, os três foram bons (...)


“50 ANOS LUZ” página 242



Livro publicado em 2001 - «50 Anos de Luz»

4) Naturalmente dependerá de com quem estiver trabalhando e do tipo de projeto, mas gostaríamos de saber como o Edgar trabalha em conjunto com a realização desde o primeiro momento e como essa colaboração se mantém ao longo do processo.


No excerto que se segue, Edgar fala do processo conjunto de transformar as ideias em imagens:


A diferença entre o diretor de fotografia e o leitor comum é que o primeiro vai ter que concretizar suas imagens, e por isso tem que estar alerta para elas. Para o fotógrafo, essas imagens que passam pela cabeça de qualquer leitor ao ler qualquer romance são a essência de seu trabalho. É na primeira leitura que virão as primeiras imagens, e é dessas primeiras imagens que começará a nascer o conceito da fotografia do filme. É preciso estar atento a elas e ter disciplina para transformá-las em algo concreto, e isso antes mesmo de pegar a câmera e fotografar. Uma maneira de tentar torná-las concretas é desenhá-las. Nem todo fotógrafo é pintor ou desenhista; aliás, a maioria não o é. Mesmo que fossem, perceberiam que a transposição de uma ideia para um desenho não é mais fácil do que para um filme. A imagem que se tem na cabeça, ao ser desenhada, transforma-se em outra coisa. O que não é de se surpreender, pois mesmo os pensamentos, ao ser transpostos para palavras, também se transformam em outra coisa. Essa outra coisa é o que fica, e, na realidade, a imagem que a gente tinha na cabeça, e que parecia ser tão clara e evidente, só passa a ser realmente alguma imagem, ou texto, depois de posta no papel. Aí então ela passa a existir, e em pouco tempo substituirá aquela imagem etérea que havia na imaginação. Para os outros, e, no fim, para você mesmo, a imagem definitiva é aquela que foi concretizada, e a imagem mental terá se diluído para sempre, sendo substituída pela imagem real. Trata-se, finalmente, do filme que saiu daquele roteiro.


Não há esperança. As imagens mentais nunca chegarão à tela, ao papel, ou a lugar nenhum, mas, mesmo não havendo esperança, não deve haver desespero, e há de haver método, pois não estamos atrás da perfeição na transposição do mental para o concreto, mas apenas fazendo arte. Quanto mais próxima uma da outra, a imagem mental daquela concreta, melhor. Será sempre uma questão imponderável e vã. Resta discutir o uso de algum método que nos ajude nesse processo, e que cada um consiga fazer a transposição do imaginário para o concreto segundo sua habilidade e seu próprio talento, o que é outra coisa imponderável.


Nada disso é conversa jogada fora, porque são duas coisas que temos que manter em mente quando transpomos palavras para imagens. Ou sentimentos para poemas, ou sensações para pinturas... enfim, para fazer arte, como falei acima. Primeiro, a luta é vã e interminável. Segundo, faremos isso de qualquer modo, mesmo ficando sempre insatisfeitos, e já que o teremos de fazer, que seja com método.


Para transformar palavras em imagens, dois métodos são tradicionais em cinema: decupar e fazer o storyboard. Sem nenhum dos dois, estamos condenados ao fracasso, ou não. Vá lá saber. Às vezes, mesmo fazendo os dois, fracassamos; às vezes, não. Em geral, porém, nunca fazemos nenhum dos dois e não fracassamos. Enfim, é melhor fazer os dois, ou um dos dois. Os dois métodos resultam na mesma coisa, ou seja, visualizar o filme antes de estar lá. Sentar e, como um Steve Wonder tocando piano, ver as coisas que estão por vir, aquelas coisas que estão descritas no roteiro e que vamos separar em séries de imagens. O que era um bloco único de ações vai ser separado em descrições de ações diferentes. Isso é decupar. A palavra vem do francês couper, “cortar em pedaços”. Assim, decupar é separar as ações que estão descritas no roteiro, sem interrupções, em ações separadas, segundo as diferentes posições de câmera. Essas ações, assim separadas e vistas através de uma “câmera futura”, serão então descritas em palavras ou em desenhos, para serem filmadas depois. Em palavras, é a decupagem. Em desenhos, é o storyboard.


“50 ANOS LUZ” página 235


5) Poderia dar-nos exemplos da forma diferenciada como trabalha/trabalhou com diferentes realizadores? (Por exemplo, Sérgio Tréfaut e Luís Filipe Rocha - interessavam-nos preferencialmente exemplos de colaborações em Portugal, mas se achar mais esclarecedor escolha outros exemplos)


Sobre a preparação dos filmes.

Houve filmes em que a preparação foi feita com storyboard e outros sem storyboard.

Houve storyboards desenhados por mim, outro com o storyboard feito pela própria realizadora (Maria de Medeiros) e até storyboards que tinham que ser seguidos R-E-L-I-G-I-O-S-A-M-E-N-T-E, impostos pelo rei, pelo bispo ou pelo papa. O “rei” e o “bispo”, no caso, sendo os donos das televisões, o primeiro, os reis, os Marinhos donos da TV GLOBO e o outro, os bispos da TV RECORD.


Storyboard de “Ribeirão do Tempo” da TV Record

Storyboard de “Camarate” de Luís Filipe Rocha. Estes são alguns exemplos de Storyboards que foram desenhados pelo Edgar, juntamente com os realizadores, que também escreveram indicações.

Frame final de “Ribeirão do Tempo”

Preparação de Longa-Metragem usando fotos e/ou pinturas.


Exemplo extremo: Quando o realizador sabe exatamente o que ele quer na fotografia.

Sérgio Tréfaut para o seu longa-metragem “Viagem a Portugal” queria “uma fotografia em preto & branco como Richard Avedon”. Mandou fotos e até um “como fazer”. Fiz assim, na “pós”, que dizer, o “Richard Avedon” foi gravado em cor e feito na “Correção de Cor”. 2353


Teste de correção de cor em fotografia de Maria de Medeiros

6) Como costuma ser a relação do Edgar com a equipa de imagem? Tenta manter a mesma equipa em todas as rodagens? São importantes para si algumas características claras no perfil de novos colaboradores como um primeiro assistente de câmera ou um gaffer com quem não tenha antes trabalhado?


Sim, gostaríamos de “manter as mesmas equipes em todas as filmagens”, mas quem há de? Assistentes viram operadores de câmera e depois DoPs, eletricistas viram gaffers, maquinistas por vezes se tornam produtores (como o Zé Gomes no “Jaime”). Todos partem em busca de seus próprios “fiéis” colaboradores.


Foi assim em Portugal. Exemplo: Iana Ferreira - 1ª Assistente de Câmera em “Camarate” e Operadora de Câmera em “Equador”

... e no Brasil, como exemplo, Jacques Cheuiche como segundo assistente de câmera no longa-metragem “Um Cangaceiro Trapalhão” e depois o mesmo Jacques Cheuiche como Co-Realizador! E DoP! Nos documentários “Luz e Sombra” (2016) e em todos os filmes posteriores do Eduardo Coutinho!

Em Portugal conheci e foi muito bom trabalhar, seguidamente, com estes assistentes de câmera (hoje DoPs), maquinistas, chefes-eletricistas, técnicos de som etc. etc.etc: Amílcar Carrajola; Miguel Sales Lopes; Paulo Miranda e Carlos Santos (maquinistas), Tita e Musga (Chefes - eletricistas), Vasco Pimentel, Pedro Melo e Carlos Alberto Lopes (Engenheiros de Som).



Fotografia de rodagem de Carlos Silva

Sim, mas também acontece de trabalhar com gente, indicada pela produção, com quem você nunca trabalhou antes e, nem sabe quem é ou se é bom, e se você vai se dar bem com o contratado. Acontece. Mas, mais raramente ainda acontece de você descobrir que o indicado pela produção, como Gaffer, foi eletricista do “Sheltering Sky”. Aí, além de te ajudar e muito (no “Jesus” da TV Record gravado em Ouarzazate (a Hollywood do deserto), no Marrocos, te conta as melhores histórias (e fofocas) das filmagens dos grandes filmes. Nome? Patrizio Bramucci.


7) Tendo uma vasta experiência de trabalho tanto no Brasil como em Portugal, sente que existem diferenças substanciais entre as equipas brasileiras e portuguesas?


As equipes técnicas, ou seja, o pessoal de câmera, maquinistas e eletricistas, de Portugal (diz-se “da pesada” no Brasil) têm uma vantagem sobre as locais (do Brasil): são internacionais. Quer dizer, trabalham, devido ao “mercado de verão” (sol, bom tempo estável) para os “gringos”, ávidos de locações estáveis (sol e sem chuva). Os técnicos portugueses adquirem assim procedimentos (novos) que no Brasil não temos acesso (ainda). Aprendi muito em Portugal. Não específico aqui quais foram. Foram muitos. Não seria necessário. São todos “muita bom”, os novos procedimentos e as equipes técnicas de/em Portugal.


8) Notoriamente, na sua carreira, o Edgar conjugou o trabalho de luz com a operação de câmara. Essa foi sempre uma escolha óbvia para si?


Ao longo dos anos e dos filmes que fotografei, tive diferentes tipos de “Operação de Câmera”: eu próprio operando a câmera (algumas vezes em estilo “câmera na mão”), ainda no tempo em que não havia vídeo-assist, e mais tarde sendo eu próprio a operar (ou com outro operador), e por vezes, com vídeo-assist.



Edgar como operador de câmera

Para além de mencionar a distinção de trabalho de câmera que teve na sua carreira, Edgar comenta que o trabalho do operador de câmara é puramente mecânico:


O que faz o câmera.

O câmera faz as pessoas não perderem a cabeça. Nem os atores, que devem tê-las dentro do quadro, nem o diretor de fotografia, que poderá, assim, usá-la para iluminar. O diretor de fotografia, quando trabalha com um bom operador de câmera, pode se concentrar na luz e esquecer os problemas de câmera. Isso, é claro, depois de ter resolvido com o realizador do filme qual movimento de câmera o câmera executará.


É isso que o operador de câmera faz: executa, e bem, o que lhe foi indicado como movimento de câmera. Não inventa, não cria, não interfere. Não fala com os atores nem dá opinião sobre a luz. Quem fala com os atores são o realizador e o assistente de direção, e quem faz a luz, é claro, é o fotógrafo. O câmera não se mete com o drama nem com a composição do quadro, “faz”; a câmera, concentra-se em executar, mecanicamente, os movimentos de câmera. O “mecanicamente” não tem nenhum sentido pejorativo; quer dizer apenas o que a palavra quer dizer, “relativo a processo em que cada momento é determinado por condições antecedentes invariáveis”. “Antecedentes”, aqui, é a palavra-chave. Na operação de câmera de um filme de ficção não há espaço para o câmera inventar nada. Tudo já estava previsto antes. Dessa maneira, os atores farão os deslocamentos que fizeram no ensaio, e o quadro será aquele que foi feito, testado e aprovado antes de se começar a filmar. E quem decidiu no ensaio foi o realizador e o diretor de fotografia. A função do câmera é garantir que, a cada take, o quadro será absolutamente igual àquele que foi ensaiado e que os movimentos terão o mesmo ritmo. Quadros, pans e tilts se repetirão, com precisão, a cada take. As velocidades de movimento e de mudança de quadro serão sempre as mesmas. Essa é a função do câmera: fazer de novo o que foi feito. Fazer de novo e fazer bem-feito o que foi feito uma vez e garantir que, a cada vez, será bem-feito de novo. Só essa confiabilidade permitirá que o realizador se concentre nos atores e o diretor de fotografia, na luz. Conseguir isso já é muito, e é muito difícil operar bem uma câmera, mas, para a maioria dos operadores de câmera, o mais difícil é ter consciencia de que ele está ali só para isso, para fazer o que foi idealizado pelos outros. O realizador do filme e o diretor de fotografia inventam. O câmera executa. Mas desde o advento do vídeo-assist, quando o realizador do filme passou a poder ver, ao vivo, o que está sendo filmado, as coisas têm mudado muito. Atualmente, o câmera tem discutido diretamente com o realizador os problemas de quadro, enquanto o diretor de fotografia fica mais como um iluminador. Não estou reclamando a perda do poder criativo do diretor de fotografia, apenas constatando uma tendência.


Não é boa nem má, é nova. Por ser nova não pode ser definida ainda. Assim, descrevi apenas o trabalho do operador de câmera tradicional, aquele que “enquadrava e calava a boca”; e me parece que já está muito bem. Para ele e para mim.


“50 ANOS LUZ” página 327


Edgar a operar a câmara. Edgar operando a câmera, ainda sem vídeo-assist: “A Queda” (1978) “Cinema Móvel” (1979), “Pinto Vem Aí” (1977) e “Cabra Marcado Para Morrer” (1984)(Col. Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema)

“A Queda” (1978)


Não tinha operador de câmera, nem “Vídeo-Assist”, nem tripé, nem ensaio e quase nem mesmo um roteiro (guião). O realizador Ruy Guerra, junto com o ator principal Nelson Xavier, escreveram duas páginas sobre a história que queriam contar. Contactaram atores experientes e que eram capazes de improvisar e desenvolver eles mesmos os diálogos. Durante a rodagem Ruy nunca olhou na câmera, nunca me disse o que queria ver ou enquadrar, ensaiava sucintamente a ação e filmávamos ao vivo e a cores. E como Ruy controlava o resultado se não havia vídeo-assist? Ele estava seguro do teu trabalho? Eu não diria que sim. De vez em quando usava um fotômetro spot-meter para checar o que eu, novato, estava fazendo. Mas… depois que viu o primeiro copião (“rush”, “dailies”), ficou satisfeito e continuamos assim. Satisfeitos. Os dois. Deu no que deu: Urso de Prata em Berlin em 1978.


“Cinema Móvel” (1979) (12)


Eu estava trabalhando como Professor Colaborante no Instituto Nacional de Cinema em Maputo. Depois de muito tempo dando aulas recebi a missão de, levando alguns alunos para participar, documentar a implantação do “Cinema Móvel” no norte de Moçambique. Como sempre, na época, a câmera não tinha vídeo-assist, eu não tinha operador de câmera e nem mesmo realizador. Também não havia roteiro (guião) ou a mais vaga orientação sobre o que deveria filmar... ou não. A carrinha, o projetor, a tela de cinema e aparelhagem de som, recém-chegados da URSS, eram operados por colaborantes russos que não falavam português. Resultado: Foi o meu melhor e mais produtivo trabalho para o Instituto de Cinema em Moçambique. Margarida Cardoso quando fez, em 2003 o documentário “Kuxa Kanema”, incluiu este filme no seu documentário. Só assim vi o resultado... era “muita bom”.


«Kuxa Kanema» documentário de Margarida Cardoso

Capa do “Cabra Marcado Para Morrer” (1984) Imagens do filme

Capa do “Cinema Móvel” e imagem do filme ”Pinto Vem Aí” (1977) Capa do “Pinto Aí Vem” e imagens do filme

Esta mesma história (acima) serve para contar como foi a rodagem do documentário” Pinto Aí Vem”, que junto com o “Cinema Móvel” me deram experiência para filmar o… “Cabra Marcado Para Morrer” extraído do livro “Câmera na Mão”.

Edgar recorre a um texto escrito pelo realizador Eduardo Coutinho, que expõe o seu depoimento sobre o trabalho do operador de câmera:

Edgar operando, ou com outro operador de câmera, com ou sem vídeo-assist: “A Queda”, “A Bela Palomera” e “Kuarup”.


“Bela Palomera” (1988)


Ruy Guerra marca seus planos na câmera. Ensaia, ensaia e ensaia, fazendo ele mesmo o enquadramento, e vai dando as indicações para os maquinistas: “Aqui é a final”. Muda de ideia em seguida e dá uma nova marca: “Aqui é a finalíssima”. A certa altura, ouviu-se o assistente do Moacir, já meio confuso com tanta marca, perguntar baixinho: “Moacir, aqui é a final ou a finalíssima?”. Moacir, que sempre foi uma das línguas mais rápidas do meio oeste, disparou: “Não enche o saco, que isso aqui não é campeonato de futebol para ter final e finalíssima. Bota aí um, dois, três, quatro e pronto”.


“50 ANOS LUZ” página 346


Ruy Guerra e Edgar na filmagem de “Bela Palomera” e imagem do filme.


Capa de “50 Anos Luz” e fotografia de Ruy Guerra sentado na grua

Eu fiz a operação de câmera no filme “Bela Palomera” que foi rodado ainda sem “vídeo-assist“. O Ruy marcava os movimentos de “grua” e “charriot” e eu tinha que prestar atenção para repetir o que só ele tinha visto. Vale a pena ver o filme, é cheio de intrincados movimentos de câmera.

Finalmente chega ao Brasil o “video-assist“ e faço meu primeiro filme com um Operador de Câmera:

“Kuarup” (1989).

Aí as coisas se simplificaram de um lado para se complicar de outro. Alexandre Fonseca, o operador de câmera (escondido pela câmera na fotografia que se segue), tinha que repetir, milimetricamente, os planos que Ruy tinha criado e agora checava a execução no “vídeo- assist“.



Capa de “Kuarup” e fotografia de Ruy Guerra e Edgar durante as filmagens.

O “vídeo-assist“ era “profissional”, de última geração, mas em 1988 (quando foi rodado o filme), só servia para ver o quadro. Para a Direção de Fotografia era um inferno: a imagem, em um P&B granulado, parecia o resultado de um exame de ultrassom em mulheres grávidas e não ajudava em nada a iluminação, na realidade atrapalhava porque deixava todo mundo inseguro. Porquê? Porque eu que não via nada de útil para mim no “vídeo-assist“, e os atores, que agora podiam ver suas atuações logo depois de filmar... não entendiam o que estavam vendo... o que atrapalhava o ritmo da filmagem e incomodava à realização.

Fiz vários trabalhos com o Nicolau Breyner em Portugal, entre eles o primeiro “Encontros Imperfeitos”, o do meio “Jaime” e o último “Equador”. Antes de descrever o trabalho do Diretor de Fotografia em televisão e a relação dele com a câmera de TV, uma coisa que aprendi com o Nicolau Breyner sobre como gravar as correrias das novelas para a televisão:

“Primeiro a gente grava, depois a gente ensaia”.


“Primeiro a gente grava, depois a gente ensaia”. Nicolau Breyner

Sobre a televisão


A seguir mais um capítulo do livro “No AR - Direção de Fotografia em Televisão”, que eu estava escrevendo e não estou mais. Porquê? Porque eu só estava falando mal (na realidade não parava de ironizar o trabalho do DoP na televisão). E isto, falar mal, ironizar, não se faz... não se deve escrever só para “cuspir no prato que comeu” e até comeu “muita bem” durante dez anos. Sobretudo que tudo que eu já tinha sido escrito, se encaminhava para uma conclusão, inevitável, que é esta: “Não existe Direção de Fotografia em Televisão”. Pelo menos no que a gente conhece, em cinema, como direção de fotografia. Na televisão existem, nas novelas, pelo menos dois responsáveis por enquadrar: o Diretor Artístico (que é o Realizador, em cinema) e o “Diretor de Corte”, que é um editor “de facto” na hora de gravar.

O Diretor de Fotografia (como conhecemos em cinema) não se mete com o enquadramento da(s) câmeras, vira um “iluminador”. Por isso desisti de escrever o tal (novo) livro. Mas, esta parte que transcrevo abaixo, seria sobre um assunto que responde a uma pergunta sua, sobre a operação de câmera, neste caso, em televisão.

Edgar relata um momento da rodagem da série “O Primo Basílio”.

(...) O diretor quer fazer “cinema na TV”. Está convencido que o problema são as lentes. Manda o Diretor de Fotografia (de cinema) ir comprar lentes... de cinema. Londres, Paris, Nova York. Bom sinal: “Há dinheiro!”. Super bem recebido nos USA, estava lá como “client”. Vai comprar. “The business of America is business”.


Capa de “O Primo Basílio” e imagem da série

Volta com as lentes, os adaptadores para as câmeras de TV e de brinde do vendedor, três grandes “para-sóis” de cinema, com fole extensível e porta filtro. Tudo montado nas câmeras de TV, as lentes e os adaptadores são descartados. Um trambolho. Os para-sóis aprovados. “As câmeras parecem de cinema!”. Dizem.


Corte rápido.


“Gravando!”. O diretor de fotografia encontra um para-sol escondido atrás de um sofá no cenário. “Pô Custódio, O Daniel vai reclamar!”. “Ô Edgar, esse negócio está me atrapalhando muito, vai atrasar”. “OK, Custódio, OK, manda ver”.

Outra cena. Outro dia. O outro câmera do PRIMO BASÍLIO era o “Micro-ondas”. Ele está na cama com o Marcos Paulo e a Giulia Gam, nus, se pegando. Daqui a pouco toma um puta esporro do Daniel: “Pôrra Micro-ondas, enquadra isso direito!”. E eu me assusto: “Putz! O cara também vai reclamar do para-sol”. O Micro-ondas sem nem alterar a calma com que sempre fala, explica: “Seu Daniel, o ´Basilinho´ está aparecendo”.


“NO AR – Direção de Fotografia em Televisão” capítulo “O PRIMO BASÍLIO, ROSA e MAO”, página 19


Fotografia do set de “Ribeirão do Tempo”

Pois... o problema da operação de câmera em televisão é este: Muita câmera, muito operador de câmera e... onde está Wally? o Diretor de Fotografia?


A) atrás de uma das três câmeras

B) no plateau ao lado da câmera principal

C) na “suíte” ao lado do Diretor Geral olhando uns seis monitores

D) junto com o Operador de Vídeo olhando só o waveform

E) em outro estúdio, longe da gravação, montando a luz da cena de amanhã

F) junto com o colorista, no DA VINCI corrigindo a cor da cena que vai ao ar daqui a cinco minutos

G) em todos os lugares ao mesmo tempo e em lugar nenhum



Posição de Edgar no set G) é a resposta correta, como se pode observar pela fotografia

Fotografias de operação de câmera para televisão

Sobre o mesmo assunto, Edgar relata outro momento de rodagem:


“Estávamos filmando o “Tieta” do Cacá (Diegues). Eu (Diretor de Fotografia), Cacá (Realizador), Vicente Amorim (Assistente de Direção na época) e Gustavo Hadba (Operador de Câmera de então e agora também, no “Princesa Yakuza”). A cena: Tieta perdendo a virgindade no gramado com o Heitor Martinez. Noturna. Corpos rolando na grama. Gustavo Hadba, câmera do filme, propõe um enquadramento (Gustavo sempre propõe enquadramentos...). Ele vira (do verbo “virar”) o SteadyCam de cabeça para baixo e se aproxima, em “traveling avant” do casal transando, rasando no chão (a câmera). Eu digo (olhando no “vídeo-assist”): “Pô Gustavo, assim não dá, parece que um cachorro está se aproximando do casal”. Vicente diz: “Eu pensei que fosse uma barata atômica mutante”. E o Cacá Diegues: “Eu pensei que fosse um coelhinho”.


E acrescenta:


Eu continuo querendo dizer alguma “coisa” com o enquadramento (“que caretice, cara”!). O Cacá Diegues continua fazendo poesia nos filmes. E... o Vicente Amorim… continua vendo a mundo como um ambiente habitado por “baratas atômicas mutantes”. O Gustavo? Continua enquadrando “mucho louco” e agora, também ilumina assim. E isso é bom? Eu acho, como dizem em Portugal: “Muita bom, Pá!”


Em “50 ANOS LUZ”, Edgar fala também sobre um operador de câmera com quem trabalhou:


O câmera – Dib & Hadba


O câmera do Cinema Novo chamava-se Dib Lutfi. Quando se viam os créditos daqueles filmes parecia que só existia um câmera no mundo: Dib. Hoje chama-se Hadba. Gustavo Hadba é o operador de câmera mais universal que existe atualmente no Brasil. Uma espécie de Caetano Veloso da câmera. Agrada a todo mundo e está em todos os lugares ao mesmo tempo. Consegue trabalhar com o Babenco e com os meninos da Conspiração, com o Nonato Estrela e com o Lauro Escorel. Comigo e com o francês do Barretão. É amigo de todo mundo; amigo, não, querido. Faz a alegria de uma pessoa triste como o Cacá Diegues e consegue desmanchar o mau humor do Affonso Beato. Uma amostra: durante a filmagem de O que é isso, companheiro?, foi acusado pelo Bruno Barreto de andar de mau humor por não estar tendo vida sexual. Respondeu-lhe que não era bem assim, pois ele, Bruno, estava f... com ele há três semanas. Ah, além de rápido de espírito é bom de câmera, ótimo. Opera tanto steadicam quanto cabeça de manivela. Ficou em casa treinando quando estava com hepatite.

Também participa da concepção dos planos e dá ideias. Um pouco demais para o meu gosto, o que me levou, certa vez, a lhe dizer: “Cala a boca e enquadra”, frase pela qual pago até hoje. Embora se interesse por iluminação, ainda não chegou ao ponto do “excesso de capacitação para pouca função”, que acomete assistentes e operadores de câmera antes de se tornarem fotógrafos. Vai acabar fotografando, mas, por enquanto, gosta de fazer o que faz, câmera, e isso – fazer câmera – consiste no seguinte.


“50 ANOS LUZ” página 327


9) O diretor de fotografia deve sempre imitar a natureza, quando não lhe é exigida uma estética explicitamente surreal?


Edgar esclarece que a imitação da natureza é impossível, contudo, o fotógrafo deve procurá-la:


(...) o alvo da fotografia é a reprodução fiel da natureza (o.k., artistas, o.k., não é bem assim, sabemos, ninguém quer apenas retratar a natureza exatamente como ela é, queremos sempre interpretá-la, tudo bem) e, se quisermos ser hiper-realistas e fazer da foto a imagem perfeita da realidade, sabemos que há restrições técnicas. Mesmo não sendo fotógrafos, nem cientistas, sabemos que muito fica de fora. As cores sofrem até mais do que os contrastes. Não o vermelho da maçã, o azul do céu ou o verde das matas. Eles estarão lá, RGB, mas mais pobres e sem as sutilezas que existem na natureza. São estas as limitações das máquinas de reprodução da realidade, que são as câmeras, e este é o trabalho do fotógrafo: reproduzir, gravar, cores e contrastes (…)


“DA COR” página 18


10) Em "50 Anos Luz", expressa tristeza pelo desaparecimento da película de cinema. Quais considera serem os pontos positivos e negativos, da transição da película para o digital?


De forma pragmática, Edgar afirma que o digital inevitavelmente virá a ser superior:


Ninguém se lembra disso e por isso não chora nem pranteia. Mas sumiram todos. E agora?

O que falta para sumir o 35 mm ou a última trincheira do filme fotográfico, o CinemaScope? Nada, ou a mesma coisa: uma câmera eletrônica com igual ou maior definição que o CinemaScope, e que seja portátil! Dez anos. Cinco.


“50 ANOS LUZ, Câmera e Ação”


11) Notoriamente o Edgar teve desde sempre uma preocupação em acompanhar o processo de pós produção considerando-o como parte importante do seu trabalho, para além da rodagem. O cinema digital tornou o processo de pós-produção de imagem mais complexo e repartido entre várias funções. Como é que esta mudança influenciou o seu trabalho? Considera que essa repartição pode trazer algum ruído no processo de criação da imagem final do filme, dado que aumentou o número de pessoas envolvidas bem como a especialização das suas contribuições? Considera que se corre um certo risco de uma diminuição do controle da imagem final por parte do diretor de fotografia?


Em “Da Cor”, Edgar expõe uma visão positiva desta repartição, considerando todos os elementos fulcrais:


A fotografia digital e a correção de cor estão chegando mais perto do que a fotografia fotoquímica jamais conseguiu. Para o desespero dos puristas. Eu, incluso. Mas não adianta espernear, é assim. E se a fotografia conseguir gravar, roubar da natureza as suas cores e contrastes, é o colorista, na correção de cor, quem vai extrair isso da imagem e conseguir fazer tudo aparecer. Por isso, é importante conhecer essas duas disciplinas, a fotografia digital e a correção de cor. Elas são irmãs siamesas, nunca mais existirá uma sem a outra. A fotografia digital não sabe nada, só grava. A correção de cor também não sabe nada, mas, as duas e os dois, fotógrafo e colorista, juntos, podem tirar de bits and bytes o que nunca antes havia sido extraído da natureza. A fotografia está, então, nas nossas mãos.

Agora, vou tratar do que fazemos os dois, fotógrafos e coloristas, quando sentamos, juntos, na frente do monitor, para mostrar a vocês o que vocês viram na natureza e nem se deram conta. É o controle das cores.


“DA COR” página 18


Um Diretor de Fotografia é um artista?


Edgar aparenta ter uma perspetiva algo analítica da direção de fotografia:


Parece existirem mil definições diferentes. Como resumir? Ora, vamos fazer como o imperador chinês que juntou todos os filósofos do império e ordenou que escrevessem sobre o sentido da vida. Depois, juntou todos os livros que os sábios tinham escrito, peneirou, peneirou e tirou deles a única coisa que todos tinham em comum. Só sobrou isto: “Nascemos, sofremos e morremos”. Pois a função do diretor de fotografia também pode ser reduzida a apenas uma frase: “Fazer belas imagens”.

É claro que fica faltando definir o que são as tais “belas imagens”. Para isso, nem vai ser preciso juntar todos os artistas do mundo, basta juntar três: Leonardo da Vinci, Vermeer e os closes do cinema americano. Todos os três, ao longo de cinco séculos, chegaram à mesma conclusão, que é a seguinte: “A sombra do nariz deve ser, no máximo, do tamanho do próprio nariz”. Claro que, para dizer isso, da Vinci foi mais elegante, Vermeer mais definitivo e os closes do cinema americano mais matemáticos.


“DA COR”, página 136



Notas de Da Vinci e esquema que replica a luz do quadro “Rapariga com Brinco de Pérola”.

Quem fotografa? Quem escreve com a luz? São os diretores de fotografia.

Só em cinema? Se a resposta fosse afirmativa, então não saberíamos que nome dar aos, digamos, iluminadores de televisão? Seriam videógrafos? Ou seriam diretores de videografia? Teleiluminadores? Telégrafos? As pessoas que iluminam em TV gostam de ser chamadas de diretores de fotografia, como em cinema. A razão pela qual os iluminadores de TV gostam do título de diretor de fotografia é a palavra “diretor”. Tem mais pompa. Dá mais dinheiro. Mas estão certos. Se eles decidem onde colocar a luz e a câmera, são diretores de fotografia. O nome da profissão, de quem lida com luz e câmera, é diretor de fotografia. Assim como quem lida com cenário e figurino é diretor de arte. Excluída uma das duas, ou se é uma coisa ou outra. Quem resolve o que será a imagem, e isso incluindo luz e câmera, é diretor de fotografia. Quem só ilumina é só iluminador. Quem só faz câmera é só câmera. O câmera. Assim também é com quem lida só com a cenografia. É o cenógrafo. Só com figurino, figurinista. O diretor de arte é o responsável pelos dois: cenário e figurino. E é o diretor de fotografia, seja em filme, em vídeo, em CD-ROM ou em HDTV, ou no que quer que seja, o responsável pela imagem, inteira, luz e câmera. Depois que a luz passou por uma lente, feriu uma superfície sensível e formou uma imagem, é a luz (photo) escrevendo (graphando). Quem lida com os dois elementos, luz e câmera, está fotografando. E, como Picasso ou qualquer escritor sabe, para escrever, pintar ou fotografar, usa-se a cabeça.

Existem várias maneiras de aprender a profissão. Nas escolas e na prática. Nas escolas, aprende-se de tudo um pouco e fica-se conhecendo quem estará na profissão no futuro; todo mundo que está na escola um dia estará ao seu lado no set. Na prática aprende-se tudo que é útil para quem está lhe ensinando. Sim, pois os diretores de fotografia ensinarão aos seus assistentes o que precisam que eles saibam para lhes facilitar a vida. Como todo mundo que está no set sabe mais, concretamente, sobre uma filmagem do que os professores que ensinam nas escolas, aprende-se muito das coisas concretas, mas muito pouco das relações entre elas. Nos dois casos, existirão buracos na formação. Quem fez escola, só terá essas lacunas preenchidas pela prática dos estágios. Já quem aprendeu na prática terá de estudar sozinho o que só se aprende na escola.


“50 ANOS LUZ, Câmera e Ação” página 210


Realça também a vertente “poética” do trabalho, que embora subjetiva, geralmente é vista como a materialização das ideias do realizador:


O diretor de fotografia


O livro do Almendros, Días de una cámara, começa com a seguinte pergunta: O que faz o diretor de fotografia? Em uma reportagem da Revista de Domingo sobre “profissões estranhas”, perguntava-se a mesma coisa. Almendros disse que o fotógrafo é uma pessoa que faz tudo e nada. Os diretores de fotografia entrevistados pela revista do JB deram respostas diversas. Tadeu 3 disse que o diretor de fotografia era o responsável técnico da filmagem. Murilo 4 disse que o fotógrafo (diz-se, por vezes, fotógrafo em vez de diretor de fotografia) era o spalla do diretor do filme. Eu disse que o diretor de fotografia era quem transformava os sonhos do diretor em realidade. Mas a melhor de todas as definições foi a do Antônio Luiz: 5 “O diretor de fotografia é o pintor dos quadros dos outros”.

Isso é suficiente quanto à poesia. Quanto à definição técnica, ela é a seguinte: Diretor de fotografia é quem lida com luz e câmera. Qualquer outra definição definirá outra profissão.


“50 ANOS LUZ, Câmera e Ação” página 209



Edgar a medir a luz. (Col. Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema)

Notas do editor:

Em respeito pelo entrevistado e pelas suas publicações que cita amiúde, optamos por deixar a forma escrita em português brasileiro de «câmera» em vez de utilizar a forma do português de Portugal, câmara.

Checar – um inglesismo muito aplicado na linguagem entre técnicos de cinema no momento de verificar ( to check)

decupar- um francesismo derivado da palavra francesa «Découpage », também muito utilizada entre os profissionais para definir planificação de planos.


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